VI DOMINGO DA PÁSCOA






                                           O CONCEITO CRISTÃO DO ÁGAPE



Em cada um dos três anos que compõem o atual ciclo litúrgico dominical, propõe-nos a Igreja um Evangelho particular, como guia para o conhecimento dos fatos e da Palavra de Jesus. O primeiro – o ano A – é o Evangelho segundo Mateus; o segundo ano – o ano B -, o Evangelho segundo Marcos; e o terceiro ano – o ano C -, o Evangelho segundo Lucas. Mas os anos são três, ao passo que os Evangelhos são quatro! A liturgia resolveu esse impasse de um modo muito brilhante, fazendo-nos ler o Evangelho de João não em um ano particular, mas nos tempos fortes de cada um dos três anos, isto é, no período natalino e no período pascal. Nos momentos em que não basta reevocar os fatos, mas é preciso escavar para neles colher as profundidades do mistério, a Igreja recorre a João, o evangelista teólogo que, por sua acuidade, é representado com símbolo da águia. Eis por que nestes domingos após a Páscoa interrompem a leitura de Marcos e escutamos, em seu lugar, trechos do Evangelho (e hoje também da epístola) de João.
João é a testemunha ocular por excelência de Jesus; esteve com Ele desde a primeira hora (cf. Jo 1,35s); juntamente com Pedro e com Tiago, seu irmão, assistiu à transfiguração e à agonia de Jesus no Getsêmani (cf. Mc 14,33) e esteve entre as primeiríssimas testemunhas da ressurreição (cf. Jo 20,2ss). Ele mesmo se apresenta no Evangelho como “o que foi testemunha desse fato” (19,35). Mais frequentemente ainda, no entanto, João se apresenta como o discípulo “a quem Jesus amava” (13,23; cf. 19,26; 20,2). Seu testemunho principal não se refere às coisas que Jesus fez, mas ao Seu amor.
A liturgia no-lo fez ouvir hoje exatamente sob estas vestes de testemunha do amor de Cristo. Mas, para podermos acolher sem reservas seu testemunho, devemos antes esclarecer um problema que se nos apresenta, pode-se dizer, todas as vezes que lemos o Evangelho de João. João nos reportou hoje um sublime discurso sobre o amor, pronunciado por Jesus no cenáculo, a poucas horas de Sua paixão. É possível – perguntamo-nos – que Jesus tenha efetivamente dito essas coisas quando estava em vida, a discípulos tardos e duros de coração para entender até as coisas mais simples? Pelo comentário que o evangelista faz da Palavra de Jesus (segunda leitura de hoje), percebemos que as palavras ouvidas na leitura do Evangelho eram as mesmas ideias que João cultivava e pregava às suas igrejas por volta do ano 100. Como se concilia tudo isso com a historicidade do relato?
A resposta se encontra naquelas palavras que o próprio João coloca na boca de Jesus, sempre na última ceia: “Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas não as podeis suportar agora. Quando vier o paráclito, o Espírito da Verdade ensinar-vos-á toda a verdade. [...] Receberá do que é meu, e vo-lo anunciará” (Jo 16,12-13.14); o Espírito reevocará à mente as coisas ditas por Jesus e as fará serem entendidas a fundo (cf. 14,26). A revelação que Jesus faz do amor do Pai e do Seu amor pelos homens era precisamente uma dessas coisas cujo “peso” os discípulos não podiam ainda suportar. Entretanto, ela estava efetivamente na mente de Jesus, enquanto se entretinha com os discípulos na última ceia, e não pôde deixar de transparecer, aqui e acolá, das Suas palavras e de Seus gestos (por exemplo, no lava-pés e, sobretudo, na instituição da Eucaristia). Quando mais tarde João, escrevendo o Evangelho, atribui a Jesus as palavras que acabamos de escutar, não Lhe atribui nada de estranho; são verdadeiramente pensamentos de Jesus que o Espírito Santo reevoca à mente do evangelista. São os Seus gestos que Ele ilumina, potenciando a memória e a inteligência do evangelista. Quando se fala da inspiração bíblica, não se entende senão exatamente isso. Ela supõe, de fato, a fé, mas na fé garante também a verdade histórica das palavras que se leem na Bíblia. E a que ouvimos no Evangelho é, verdadeiramente e sob todos os títulos, Palavra do Senhor, isto é, de Jesus.
E agora, debrucemo-nos um pouco mais sobre essa Palavra. Que é que aí lemos? Em ambos os textos (segunda leitura e Evangelho) encontramos descrita a estrutura de três planos do amor: o amor do Pai por Seu Filho Jesus Cristo; o amor de Jesus Cristo pelos homens; o amor dos homens entre si: “Como o Pai me ama, assim também eu vos amo. [...] Amai-vos uns aos outros”.
  Tivemos outras vezes ocasião de falar de um ou de outro destes amores ( o amor de Deus, o amor de Cristo ou o amor do próximo); hoje devemos encontrar a sua unidade e a lei interior que a governa. Essa lei chama-se ágape.
O amor puramente humano, passional e natural – aquele que em grego é Eros – é dominado por esta lei: Como eu te amo assim tu me deves amar. (“Ama-me quanto te amo”, canta a protagonista de uma célebre ópera lírica italiana). É só amor de reciprocidade e, por isso, num certo sentido, um do ut des [dou para que me dês]; é mais um buscar que um dar.
O amor evangélico – chamado ágape ou caridade – quebra esse círculo vicioso que tão facilmente se torna egoísmo a dois. A sua lei fundamental é: Como Eu te amei, assim ama tu, ao teu irmão. O amor, neste caso, não se estagna, mas circula perenemente, e com ele circula a vida; não é simples retribuição, mas dom que se mantém pela transmissão, como a água que permanece viva fluindo. Amar não é ficar olhando um para o outro – já se escreveu -, mas olhar juntos na mesma direção; e essa direção – quer se olhe para trás, quer se olhe para adiante – é sempre a mesma: Deus. E, no entanto, esse amor todo projetado para adiante, isto é, em direção àquele que devemos amar, não exclui a retribuição e a gratidão, ou seja, o amar àquele por quem somos amados. O Filho corresponde ao amor do Pai (e com que amor!) e pede que nós correspondamos a esse amor. “Permanecei”, diz Ele com insistência, “no meu amor”; e o apóstolo Paulo exclama: “Se alguém não amar ao Senhor, seja maldito!” (I Cor 16,23). Só que essa retribuição e esse corresponderem ao amor se exprime exatamente dando a outro o amor recebido.
A importância do mandamento novo brota exatamente daqui, e João o coloca em evidência insistindo sobre isso mais do que sobre todos os outros planos do amor: “Amai-vos uns aos outros”, diz-nos, através dele, Jesus (Evangelho); e: “Amemo-nos uns aos outros”, diz-nos ele mesmo (segunda leitura). Se não dermos este último passo – de nós aos irmãos -, a longa cadeia do amor que procede de Deus Pai permanece como que suspensa no vazio: o amor chega perto de nós, mas não toca; nós ficamos fora de seu fluxo, fora, portanto, da vida e da luz, porque “quem não ama permanece na morte” (I Jo 3,14). São Paulo, que teceu o mais alto elogio do ágape, o faz consistir inteiramente nesse amor de doação que se exprime em perdão, em humildade, em generosidade, em serviço, em benignidade, em confiança e em tolerância: “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (I Cor 13,4-7).   
O que a Palavra de Deus quis dizer-nos até aqui parece, então, resumir-se em uma só frase: Para se ser amado, é preciso amar; para receber amor do Pai e de Jesus Cristo, é preciso dar amor aos irmãos. Mas percebamos que essa é uma conclusão pela metade, muito fácil de entender, mas também muito difícil de pôr em prática; muito “pelagiana”¹, num certo sentido, para ser cristã. (O “poder fazer” do homem parece, de fato, preceder o dom e a graça de Deus).
                Na realidade, o verdadeiro paradoxo cristão resulta do acréscimo desta outra verdade: Para amar, é preciso ser amado. João o discípulo a quem Jesus amava – compreendeu por experiência própria que só quem é amado é capaz de amar, e então escreveu na sua epístola: “Mas amamos, porque Deus nos amou primeiro” (I Jo 4,19). (Primeiro bem entendido; não uma só vez, no início, mas continuamente, porque Deus é sempre, a cada instante, Aquele que ama primeiro e que se antecipa à criatura).
1-       Conforme a doutrina herética de Pelágio, que nega o pecado original e a corrupção da natureza humana.

Essa é uma lei universal e basta examinar-nos um pouco a fundo para descobrir quanto é verdadeira também no plano humano e psicológico; somente quem experimentou, pelo menos inicialmente, o amor, é capaz de abrir-se a ele, de não ter medo de amar. Por isso, que sofreu carência de afeto na infância é tão frequentemente fechado e desconfiado, exposto mais que qualquer outro à tentação da violência. Para o crente, essa experiência primordial de amor é aquela que se inicia no batismo com o dom infuso do ágape (a virtude teologal da caridade); mas é uma experiência que somente o amor concreto dos irmãos pode desenvolver e tornar consciente.
O próprio Jesus parece confiar ao amor fraterno a tarefa de ser sinal eficaz do amor do Pai: “Para que [...] o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim” (Jo 17,23). Um pecador, um afastado de Deus, saberá que há um Deus que o busca e que lhe perdoa, se há um irmão que vai em busca dele, por ele se interessa e lhe perdoa em nome de Deus. Um pobre, um doente, um ancião abandonado, descobrirá que há um Pai também para ele, se vir um irmão que, em nome de Cristo, se aproxima dele, divide com ele o seu pão e toma para si um pouco da tristeza dele. Deus nos fez solidário e responsável uns pelos outros; quer que quem já viver a experiência de ser amado por Deus procure levar outros a viver a mesma experiência pelo único modo possível, isto é, amando-os, e amando-os concretamente, “não [...] com palavras nem com a língua, mas por atos e em verdade” (I Jo 3,18).
Nestes domingos que se seguem à Páscoa, estamos relembrando – através da leitura dos Atos dos Apóstolos – o nascimento da primeiríssima comunidade cristã, aquela de quem se diz que era “um só coração e uma só alma” (primeira leitura do II Domingo da Páscoa) e que estava cheia do Espírito Santo (primeira leitura de hoje). É esta a realização histórica a que tende o ágape cristão: uma comunidade de irmãos onde o amor de Deus impele à partilha de tudo o que se tem, inclusive dos bens materiais.
O modelo máximo de todo ágape, pessoal ou comunitário, é, porém, Jesus Cristo. Ele tudo recebeu do Pai (cf. Mt 11,27), mas, tudo o que recebeu, Ele deu para a vida do mundo, até mesmo a Sua carne. A Eucaristia que agora celebramos, é a memória viva desse ágape, a tal ponto que o próprio termo “ágape” muito cedo significou para os cristãos a refeição eucarística da comunidade. Essa é a maior memória que possa existir do ágape, visto que, como hoje ouvimos do próprio Cristo, “ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida por seus amigos”.
           


                                                  Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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