PENTECOSTES – ANO B



                                 O ESPÍRITO SANTO NA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

            Os Atos dos Apóstolos narram um curioso episódio: Chegando a Éfeso, Paulo encontrou alguns discípulos e lhes perguntou: “Recebestes o Espírito Santo, quando abraçastes a fé? Responderam-lhe: ‘Não, nem sequer ouvimos dizer que há um Espírito Santo’” (19,1s).
                Se dirigíssemos hoje a mesma pergunta a muitos cristãos, receberíamos talvez uma resposta desse mesmo tipo: sabem, sim, que existe um Espírito Santo, mas é tudo o que sabem a respeito d’Ele; de resto, ignoram quem é, na realidade, o Espírito Santo, e o que representa para a vida deles.
                Hoje se nos oferece uma ocasião única, no curso do ano litúrgico, para fazer essa descoberta essencial à nossa fé. Proponhamo-nos então, com a ajuda do mesmo Espírito Santo, refazer desde o começo o caminho da história da salvação, em busca da Sua presença suave e silenciosa.
                Já foi dito, em palavras terríveis, mas nem por isso menos verdadeiras, que a violência é a alavanca da história humana, porque não há mudança profunda que, de fato, não tenha sido marcada por guerras, revoluções e sangue. Não, porém nessa outra história, a da salvação, que tem a Deus como protagonista: sua alavanca é o Espírito Santo, isto é, a força e a suavidade do amor.
                Cada recomeço cada salto de qualidade no desenrolar do plano divino da salvação, revela uma intervenção especial do Espírito de Deus. Os Padres da Igreja (especialmente os gregos) haviam apanhado perfeitamente esses pontos luminosos que perpassam a Bíblia, como uma espécie de fio vermelho, até tornar-se luz meridiana no dia de Pentecostes.
               
Pensas na criação? – exclama São Basílio. – Ela foi realizada no Espírito Santo que consolidava e ornava os céus. Pensas na vinda de Cristo? O Espírito a preparou e depois, na plenitude dos tempos, realizou-a, descendo sobre Maria. Pensas na formação da Igreja? Ela é obra do Espírito Santo. Pensas na Parusia? O Espírito não estará ausente nem mesmo então, quando os mortos se erguerão da terra e revelar-se-á do céu o nosso Salvador (São Basílio, De Spiritu Sancto [Sobre o Espírito Santo], 16; 19).   
               
                Busquemos aprofundar essa grandiosa visão, fazendo-a correr lentamente ante nossos olhos. Jesus, no dia seguinte à Páscoa, percorria a Escritura para explicar aos discípulos “o que dele se achava dito” (Lc 24,27); nós, no dia de Pentecostes, voltemos à mesma Escritura para descobrir nela tudo aquilo que se refere ao Espírito Santo.
                “No princípio”, narra a Bíblia, “Deus criou os céus e a terra. A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo” (Gn 1,1s). Era o caos. Mas eis que “o Espírito de Deus” (o que quer que Ele queira significar nesse ponto) desceu sobre ele, e se fez a luz, a separação, a ordem, a harmonia; tudo assume o seu verdadeiro aspecto e o seu lugar: as águas recolheram-se ao mar, as ervas e as sementes germinaram sobre a terra, os astros começaram a brilhar no céu e Deus se comprouve da Sua criação (cf. v. 25). Quando este mundo ficou pronto para acolher a vida (“seis dias” depois, na linguagem figurada da Bíblia; ou milhões e milhões de anos depois, segundo os cálculos da ciência), Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (v. 26). Plasmou o homem com o lodo da terra – modo de dizer, que significa: Deus preparou, com as leis da evolução que Ele mesmo inserira na matéria, um ser vivo, animal diferente de todos os outros, mas ainda animal, isto é, criatura guiada por instintos e não iluminada interiormente pela luz da razão. Mas eis que intervém de novo aquela misteriosa realidade que havia pairado sobre as águas primordiais – o Espírito de Deus – e o hominídeo se torna homem, a criatura animal se torna um ser espiritual dotado – ainda que de início apenas embrionariamente – de razão e de liberdade. Deus “inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). Um ser capaz de dialogar com o seu Criador, de ser Seu amigo, mas também de se rebelar contra Ele.
                A escolha do homem, desgraçadamente, encaminhou-se a essa segunda possibilidade: pecou. Produziu-se então uma ruptura profunda, uma como que dissonância que criou a incomunicabilidade entre Deus e o homem; uma mancha que, com o desenrolar dos séculos, desfigurou o vulto da humanidade e da terra; de objeto de complacência tornou-se motivo de desgosto para Deus (Gn 6,7: “Eu me arrependo de havê-los criado”).
                Mas Deus não se dobrou ao mal; na Sua misericórdia decidiu, a essa altura (mas n’Ele não há um antes e um depois!), refundir a Sua criação, como se refaz uma estátua de bronze, corroída e deformada pelo tempo, para daí tirar uma nova, com suas linhas originais reconduzidas à luz. Para essa criação e humanidade nova, estabeleceu um novo Cabeça, um “novo Adão”, Seu próprio Filho Jesus Cristo. Tirou-O da carne da Virgem Maria – como no início tirara Adão da virgem terra – “por virtude do Espírito Santo” (Mt 1,18), O Espírito Santo marca também aqui o início de uma nova fase da história da salvação (cf. Lc 1,35).
                Toda a vida de Jesus – não apenas seu início – se desenvolve sob o signo do Espírito Santo; é o Espírito que guia todas as Suas escolhas e opera os prodígios que Ele realiza junto aos doentes, aos oprimidos pelo demônio, aos pecadores. No batismo do Jordão “Deus ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com o poder” (At 10,38), para levar a boa-nova aos pobres. Jesus “é conduzido” pelo Espírito Santo e, ao mesmo tempo, revela o Espírito Santo. Na Sua boca o Espírito começa a adquirir traços precisos; não é só uma força de Deus, mas também uma “Pessoa” em Deus; d’Ele de fato diz Jesus que será enviado aos discípulos, que condenará o mundo, que levará os discípulos  à verdade plena, que dará testemunho d’Ele, que falará através deles (cf. Jo 14-16); e Paulo acrescenta que o Espírito Santo intercederá neles com gemidos inefáveis (cf. Rm 8,26).
                Terminada a Sua obra terrena, Jesus é glorificado à direita do Pai. Deixou sobre a terra a Sua Igreja: são onze apóstolos e algumas dezenas de discípulos; vivem escondidos e apavorados, sem saber o que devem fazer e o que significa a ordem de ir por todo o mundo pregar o Evangelho. É ainda, por assim dizer, um corpo inanimado e inerte, como o do primeiro homem quando Deus ainda não soprara nele o espírito de vida.
                Mas eis que, improvisamente, no dia de Pentecostes, renova-se o prodígio que assinalou todos os grandes começos da história, ou seja, o nascimento do mundo, o do homem e o de Cristo (a analogia com a criação do primeiro homem é visível no relato de João: “Soprou sobre eles dizendo-lhes: ‘Recebei o Espírito Santo’”: Jo 20,22). Enquanto estavam reunidos com Maria no cenáculo, irrompeu sobre eles o Espírito Santo, e o “pequeno rebanho” se tornou Igreja, isto é, Corpo de Cristo, animado pela mesma realidade que, na encarnação, havia animado o seu Cabeça. O Pentecostes é o natal da Igreja, como o Natal havia sido o pentecostes de Jesus! A presença de Maria no cenáculo vem a calhar para chamar a atenção sobre esa ligação entre o nascimento de Jesus e o da Igreja; aquela que fora a Mãe de Jesus, torna-se agora também a Mãe da Igreja. Estava finalmente realizada aquela “obra nova” que Deus vinha anunciando aos homens (cf. Is 43,19). Por isso a liturgia de hoje, no salmo responsorial, aplica ao evento do Pentecostes aquelas vibrantes palavras que haviam servido para decantar o prodígio da criação: “Envia o Teu Espírito, Senhor, e tudo será criado, e renovarás a face da terra”.
                O sinal mais visível de que algo de novo acontecera sobre a terra é a reunificação da linguagem humana: os apóstolos, saindo de onde estavam, falam uma misteriosa língua nova; ou melhor, falam com um poder novo a sua língua habitual, de tal forma que os que os ouvem – partos, elamitas, gregos ou romanos -, entendem-nos como se falassem a sua língua e ficam maravilhados. É o sinal do reencontro da unidade do gênero humano. O Pentecostes é o “antibabel”; rebelando-se contra Deus, os homens haviam acabado por não se entenderem sequer consigo mesmos; a terra se tornara “o terreiro que nos torna tão ferozes” (Dante Alighieri). Agora a dissonância se recompõe. “Os povos”, diz Santo Ireneu, “formam um admirável coro para celebrar nas várias línguas o louvor de Deus, enquanto o Espírito reconduz à unidade as tribos dispersas e oferece ao Pai as primícias de todos os povos” (Adv. Haer. [Contra as heresias], III, 17,2).
                Na Igreja, os homens devem redescobrir-se irmãos, devem poder novamente comunicar-se entre si através de uma mesma linguagem, que é a linguagem do amor ensinada pelo Espírito Santo; ou melhor, derramada nos corações pelo Espírito Santo (cf. Rm 5,5). “O Espírito do Senhor encheu o universo; Ele, que tudo une, conhece todas as linguagens” (antífona de entrada).
                O prodígio que se realizou no dia de Pentecostes continua ainda hoje. “Se alguém” escrevia um antigo autor, “te disser: ‘Recebeste o Espírito Santo, por que então não falas em todas as línguas? ’, deves responder-lhe: ‘Por certo que falo em todas as línguas, de fato, estou inserido no Corpo de Cristo, que é a Igreja, que fala todas as línguas’” (Autor do século VI. In: PL 65, 743s). Ainda hoje a Igreja fala (e compreende) as línguas de todos os povos; ela entende e valoriza a cultura e o patrimônio de cada raça e de cada povo, e cada povo entende o seu anúncio como próprio, como destinado a si.
                Nada, porém, é irreversível e definitivo enquanto estamos nesta vida; de irreversível existe apenas a promessa de Deus, ao passo que a liberdade do homem não faz mais do que claudicar. A antiga tentação de Babel está sempre à espreita: reaparece sempre que há um ímpeto de orgulho (“Façamos alguma coisa que chegue até o céu”, isto é, que substitua Deus e O torne inútil), toda vez que o ódio turva a linguagem humana e confia sua fria mensagem de morte à linguagem terrificante das bombas e dos revólveres. Nós somos disso testemunhas, justamente aterrorizados nestes anos de violência; vivemos, por nossa conta, a experiência de quanto são verdadeiras as palavras do salmo responsorial de hoje: “Se retirares o Teu Espírito, morrerão e voltarão ao seu pó”.
                Mais do que nunca, então, reunamo-nos hoje em torno da Igreja para invocar, em uníssono, sobre nós e sobre o mundo inteiro, o Espírito Santo que é Espírito de reconciliação, de unidade e de paz; Espírito que, no batismo, assinalou o início da nossa história pessoal de salvação e que pode agora assinalar, se em verdade o queremos, o início de uma nova vida em Cristo e na Igreja. Digamos com fervor: “Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis e acendei neles o fogo do Vosso amor” (aclamação ao Evangelho).

                 
                                                  Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       


               

 
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