“EU SOU A VIDEIRA; VÓS, OS RAMOS”
Meditar estas palavras de Jesus sobre a videira e os
ramos significa encontrar a relação que nos liga, na sua dimensão mais
profunda, a Ele: “Eu sou a videira; vós,
os ramos”. É uma relação mais profunda até do que aquela que existe entre o
pastor e o seu rebanho, sobre a qual meditamos no domingo passado. No Evangelho
de hoje descobrimos onde é que reside a força interior da nossa religião (cf.
II Tm 3,17).
Pensemos
na realidade natural de que é tirada a imagem. Que é que existe de mais
intimamente ligado do que a videira e seus ramos? O ramo é uma extensão e um
prolongamento da videira. Dela é que vem a linfa que o nutre, a umidade do solo
e tudo aquilo que ele transforma depois em uva, sob os raios do sol de verão.
Se não é alimentado pela videira, nada pode ele produzir, realmente nada: nem
um pequeno rebento, nem um cacho de uva, nada de nada. Trata-se da mesma imagem
que faz São Paulo do corpo e dos membros: Cristo é a cabeça de um corpo que é a
Igreja, da qual cada um dos cristãos é um membro (cf. Rm 12,4s; I Cor 12,12ss).
Também o membro, se separado do corpo, nada pode fazer.
Onde
se situa essa relação, quando aplicada a nós, homens? Não a contrasta com o
nosso senso de autonomia e de liberdade, isto é, com o nosso sentimento de ser
um todo e não uma parte? Repousa sobre um fato bem preciso que o apóstolo
Paulo, com uma imagem também ela buscada na agricultura, chama de enxerto. No
batismo, nós, que éramos plantas improdutivas de natureza selvagem, fomos
inseridos e enxertados em Cristo (cf. Rm 11,16ss); tornando-nos ramos da
verdadeira videira e ramos da oliveira boa. Tudo isso “pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Entre a videira e o
ramo há em comum o Espírito Santo!
Qual
é então nosso papel como ramos? João – acabamos de ouvir – tem predileção por
um verbo, para exprimi-lo: “permanecer” (entende-se, unidos à videira, que é
Cristo): “Permanecei em mim e eu
permanecerei em vós”; “Se não
permanecerdes em mim...”; “Quem
permanecer em mim...” “Se permanecerdes
em mim...” Permanecer ligados à videira e permanecer em Cristo Jesus
significa, acima de tudo, não abandonar os compromissos assumidos no batismo,
não se afastar para um país longínquo, como filho pródigo, sabendo, porém, que
se pode desgarrar do Cristo de uma só vez, como de um só impulso, entregando-se
a uma vida de pecado consciente e intencionado, mas também aos pouquinhos,
quase sem se dar conta, dia a dia, infidelidade a infidelidade, omissão a
omissão, compromisso a compromisso, deixando primeiro de comungar, depois de ir
à missa, depois de rezar, e, enfim, de tudo.
Permanecer
em Cristo Jesus significa também algo de positivo, isto é, permanecer “no seu amor” (Jo 15,9). No amor, bem
entendido, que Ele tem por nós, mais que no amor que nós temos por Ele;
significa, pois, permitir-lhe que nos ame que nos faça passar a Sua “seiva” que
é o Seu Espírito, evitando pôr entre Ele e nós a insuperável barreira da autossuficiência,
da indiferença e do pecado.
Jesus
insiste sobre a urgência de permanecer n’Ele, fazendo-nos entrever as
consequências fatais de uma separação d’Ele. O ramo que não permanece unido à
videira, resseca, não dá fruto, é cortado e jogado ao fogo; não serve realmente
para nada, porque a lenha da videira – diferentemente de outras madeiras que,
cortadas, servem para outras finalidades – é uma lenha inútil para qualquer
outro fim que não seja o de produzir uvas (cf. Ez 15,1ss). Pode-se até ter uma
vida brilhante, cheia de saúde, de ideias, exibir energia, negócios, filhos, e
ser, aos olhos de Deus, lenha seca, lenha para se jogar no fogo apenas
terminado a estação da vindima.
Permanecer
em Cristo, portanto, significa permanecer no Seu amor, na Sua lei; significa,
talvez, permanecer na cruz, permanecer com Ele na provação (cf. Lc 22,28). Mas
não somente permanecer, deixando-se
ficar no estado infantil do batismo, quando o ramo havia apenas desabrochado ou
apenas fora enxertado; antes, crescer
na direção da Cabeça (cf. Ef 4,15), torna-se adulto e maduro na fé, ou seja,
dar frutos de boas obras.
Para
tal crescimento é necessário ser podado e deixar-se podar: “[Meu Pai] podará todo o que der fruto, para que
produza mais fruto”. Que significa a poda? Significa cortar os rebentos
supérfluos e parasitários (os desejos e apegos desordenados), para que toda a
sua energia se concentre em uma só direção e assim cresça efetivamente. O
lavrador fica muito atento quando a videira se carrega da uva, para descobrir e
cortar os ramos secos ou supérfluos, para que não comprometa o amadurecimento
de todo o resto. É uma grande graça saber reconhecer, no tempo de poda, a mão
do Pai, e não levantar imprecações nem reagir desordenadamente, tomando a
atitude de vítimas perseguidas por sabe-se lá que má sorte.
“Vós já estais puros pela palavra que vos
tenho anunciado”, dizia Jesus aos Seus discípulos. O Evangelho, que é a
Palavra de Deus em Jesus Cristo, é então como uma poda e representa a ascese
fundamental do cristianismo. Ele golpeia a cobiça (o deus mamona com os seus
satélites, a carne com as suas concupiscências), tudo aquilo, em suma, que nos
dispersa em tantos projetos vãos e desejos terrenos; fortifica, ao invés, as
energias sadias e espirituais; concentra-nos sobre os valores verdadeiros, colocando
em crise os falsos. A Palavra de Deus revela-se, de fato, como “uma espada afiada, de dois gumes” (Ap
1,16) nas mãos do podador.
Sob essa luz, devemos esforçar-nos por
ver não só os nossos sofrimentos individuais – os lutos, as doenças, as
angústias que golpeiam cada um de nós ou a nossa família -, mas também o grande
e universal sofrimento que aflige a nossa sociedade e o mundo inteiro,
inclusive aquele mais misterioso de todos, que atormenta os inocentes. Há
alguns anos debatemo-nos numa crise que revela nossa impotência para trazer paz
e ordem à convivência civilizada, para chegar a um acordo e pôr fim ao ódio e à
violência. Também isso é uma poda necessária no orgulho e na presunção humana.
Talvez o Senhor esteja buscando, por todos os modos, fazer-nos entender que sem
Ele nada podemos fazer (cf. Jo 15,5).
Essa é uma lição que uma sociedade é
levada a esquecer com facilidade, logo que consegue passar alguns anos sem
guerras e sem grandes tragédias. O espírito de Babel – isto é, da presunção de
construir sozinhos a casa – está sempre à espreita. Ouvimos tantos de nossos
chefes fazerem programas ambiciosíssimos, terminarem todos os seus discursos
prometendo paz, justiça e liberdade; mas, tudo isso como se dependesse
exclusivamente deles ou, no máximo, da boa vontade de todos; como se não fosse
necessário reportar-se ao Evangelho e a Deus para se estiver à altura de
preservar certos valores, incluindo-se aí também o mais elementar de todos, que
é o respeito à vida; como se o ódio pudesse ser vencido de alguma outra forma
que não pelo amor; como se avinda de Cristo à terra tivesse sido um luxo e uma
extravagância e não, ao invés, uma necessidade absoluta de salvação para todos.
Tudo isso é uma tremenda ilusão que Deus deve afastar de nós, caso contrário
voltaremos a ser pagãos como antes de Cristo. E, para afastá-la, Deus não
precisa mandar-nos duros castigos; basta-lhe deixar-nos agir um pouco por conta
própria e depois deixar-nos observar, entre ruínas e pranto, o que sozinhos
fomos capazes de fazer: “Se o Senhor não
edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem” (Sl 126,1).
A Palavra de Cristo sobre a videira e os
ramos adquire um significado novo, agora que passamos à parte eucarística e sacrifical
da nossa missa. Estamos por consagrar o vinho espremido daquela “videira
verdadeira” no lagar da paixão. Consagramos o “fruto da videira”, mas
consagramos também o fruto “do trabalho do homem”, isto é, do ramo. Deus nos
restitui como bebida de salvação aquilo que Lhe ofertamos sob o simbolismo do
vinho.
Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova
(trad.)