III DOMINGO DA PÁSCOA – ANO B





 TESTEMUNHAS DA SUA RESSURREIÇÃO

            O trecho do Evangelho que acabamos de ouvir terminava com as palavras: “Vós sois as testemunhas de tudo isso.” Era uma difícil missão que Jesus lhes designava. Eles viviam ainda escondidos após a Sua morte, temerosos de serem reconhecidos pelas autoridades como discípulos do Nazareno; e eis agora que Jesus lhes pede que saiam a céu aberto para proclamar que Ele ressuscitou dos mortos ao terceiro dia e para pregar em Seu nome a todos os povos a conversão e o perdão, começando exatamente por Jerusalém!
                E, essa façanha impossível é o que vemos realizar-se, ponto por ponto, na primeira leitura. Na manhã seguinte ao Pentecostes, Pedro diz ao povo de Jerusalém: “Matastes o príncipe da vida, mas Deus o ressuscitou dentre os mortos: disso nós somos testemunhas. [...] Arrependei-vos, portanto, e convertei-vos.” Sozinhos e poucos como haviam ficado, com a incumbência de pregar o Evangelho a todo o mundo (cf. Mc 16,15), os apóstolos não perderam a coragem; compreenderam que sua tarefa era uma só: dar testemunho de tudo o que tinham ouvido e visto realizar-se em Jesus de Nazaré; o resto fá-lo-ia Ele mesmo, cooperando com eles e confirmando a palavra deles com os prodígios (cf. Mc 16,20). “Apóstolo” tornou-se assim sinônimo de “testemunha da ressurreição” (cf. AT. 1,22). “A este Jesus, Deus o ressuscitou: do que todos nós somos testemunhas” (At 2,32; cf. 3,15; 10,40ss): é o resumo de suas pregações. “Nós vimos e damos testemunho” (citação livre de I Jo 1,2), exclama João.
                Esse testemunho levou-os todos, um após o outro, ao martírio; no entanto, em poucas décadas, haviam realizado aquilo que parecia impossível aos homens, isto é, pregar o Evangelho a todo o mundo, fazendo discípulos todos os povos.
                Os apóstolos não tinham tardado a perceber que não estavam dando testemunho de Jesus sozinhos; um outro testemunho, silencioso, mas irresistível, unia-se a eles toda vez que falavam de Jesus – o do Espírito Santo: “Deste fato nós somos testemunhas, nós e o Espírito Santo, que Deus deu a todos aqueles que lhe obedecem” (At 5,32).  E Jesus havia profetizado: “O Espírito da Verdade, que procede do Pai, ele dará testemunho de mim. Também vós dareis testemunho” (Jo 15,26s).
            Tal testemunho, que podemos chamar “de ofício” (enquanto ligado ao ministério apostólico), continua ainda hoje na Igreja. O Concílio Vaticano II deu-lhe grande relevo, falando dos bispos e dos sacerdotes como testemunhas de Cristo e do Evangelho (cf. Lumen Gentium, n. 21,25). Toda a hierarquia da Igreja – inclusive Papa e concílios – pode ser vista sob esta luz: como aquele grupo que preside o testemunho sobre Jesus Cristo e vigia sobre a autenticidade desse mesmo testemunho (a ortodoxia). A ela – hierarquia – devemos manter voltados nossos olhares e por ele deixar-nos guiar. Mas não podemos absolutamente deter-nos nisso, considerando-nos dispensados de dar nós mesmos nosso testemunho. Ao testemunho “de ofício” deve-se unir aquele testemunho que o Espírito está apto a suscitar em cada batizado. Hoje, por sinal, é desse testemunho que queremos falar de um modo particular, do testemunho “do Espírito”.
                Os leigos são também eles, testemunhas da ressurreição de Cristo. “Cada leigo individualmente deve ser perante o mundo uma testemunha da ressurreição e vida do Senhor Jesus e sinal do Deus vivo” (Lumen Gentium, n. 38). Creio eu que os tempos que estamos vivendo exigem que se dê um sentido novo a essas palavras, elas mesmas antigas. O sentido novo é o seguinte: os cristãos leigos devem deixar de considerarem-se testemunhas apenas passivas da fé, para se tornarem testemunhas ativas e criativas. Que significa isso? Significa que os leigos não podem mais contentar- se com serem repetidores das palavras ouvidas da hierarquia ou do celebrante durante a missa dominical, mas que devem voltar a tomar posse da Palavra de Deus, interpretá-la e entendê-la à luz do Espírito que lhes foi dado e das experiências concretas de sua própria vida, testemunhando-a, assim, de um modo original. “Reapropriação” é um termo que se usa costumeiramente em nossos dias, a propósito dos conflitos sociais; mas é válido também no campo da fé. É necessário retornar à posse daquela Palavra que nos foi dada por Cristo no batismo, debaixo do símbolo de uma pequena vela acesa; é preciso redescobrir o que significa ser povo profético e sacerdotal.
                É um problema de credibilidade e, antes ainda, de honestidade. Não se pode testemunhar honestamente aquilo que se conhece simplesmente por ouvir dizer: a testemunha não é crível a não ser quando fala de coisas que viu ou ouviu, em outras palavras, daquilo que viveu. Eu posso testemunhar que Cristo ressuscitou e está vivo somente se Ele ressurgiu em mim e se está vivo em mim. Quando experimento a Sua presença e a Sua consolação, quando me dá a força de abrir-me aos outros, de perdoar e de estar alegre, então entendo que, de fato, Ele ressuscitou e estou à de testemunhá-LO aos outros. Tudo o mais, ainda que revestido de cultura histórica e de eloquência, não convence; é como o sol pálido do inverno, que ilumina, mas não aquece.
                Também São Paulo, depois de ter examinado todas as aparições do Ressuscitado aos apóstolos, às mulheres, aos irmãos, acrescenta a sua experiência pessoal como aquela que convalida todas as outras: “Apareceu também a mim” (I Cor 15,8).  
                Seria necessário descer a casos concretos, para entender quando se tem deveras esse testemunho vivo de Jesus e não um testemunho repetitivo e apagado. Um só exemplo. Um testemunho louvável, mas insuficiente, é o de uma mãe que, ma iminência da primeira comunhão, ajuda seu filho a repassar o catecismo, a saber, de cor as respostas. Testemunho muito mais vivo é, ao invés, o de uma mãe e de um pai que, com seu modo de repreender e perdoar ao filho e de se perdoarem mutuamente, ensinam-no a viver a experiência do perdão de Deus; que, partindo-lhe o pão à mesa e enchendo-lhe o prato, pouco a pouco, com a ajuda de pouquíssimas palavras ou recordando frases do Evangelho, levam-no a entender o gesto do Pai celeste que nutre todos os homens, e o gesto de Jesus que dá a Si mesmo como alimento aos Seus amigos. Num congresso internacional de teólogos, dizia um indiano que fora assim que viera a entender o sacramento da penitência e o da Eucaristia: “Vendo papai que dividia entre nós a pouca comida que havia, deixando-se a si mesmo por último, entendi  o que significa crer que Cristo nos dá de comer a Sua carne.” Todos os doutíssimos arrazoados teológicos pareceram-nos desbotados diante de um testemunho desses.
                E, de resto, não foi assim que se comportou Jesus mesmo, com os Seus? Multiplicando para eles o pão, comendo com eles – como se lê no Evangelho de hoje – uma porção de peixe assado, levou-os a entender Seu dom espiritual.
                A Palavra de Deus deve voltar, pois, a recobrir os espaços e os tempos da vida quotidiana, e, para que tal aconteça, é preciso que todos os crentes voltem a tomar posse da Palavra, a familiarizar-se com ela, a sentir-se pessoalmente responsáveis e depositários dela junto à família e nos locais de frequência diária. Não há por que desencorajar-se dizendo: “O Evangelho é difícil! Que posso eu entender disso? Como posso falar a respeito? Como aplicá-lo às circunstâncias tão frequentemente ambíguas da vida concreta?” A essa dificuldade responde, de alguma forma, o Evangelho de hoje: “Enquanto ainda falavam dessas coisas, Jesus apresentou-se no meio deles [...]. Abriu-lhes então o espírito, para que compreendessem as Escrituras.” Jesus não nos deixará a sós falando d’Ele; far-se-á presente com o Seu Espírito e abrirá nossa mente, para que compreendamos as Escrituras. As circunstâncias de vida em que nos encontramos diante da necessidade de aplicar a Palavra de Jesus serão, elas mesmas, mestre mais eficaz que os bancos de escola, porque a Palavra ilumina a vida e se deixa iluminar pela vida.
                Que a Eucaristia nos leve hoje a responder com um sim humilde e corajoso à proposta que Jesus nos fez, de sermos testemunhas da Sua ressurreição.



                                    Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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