II DOMINGO DA PÁSCOA - ANO B






                                        
                                         CRISTO AINDA NÃO RESSURGIU INTEIRAMENTE:
                                                                  UMA MORAL PASCAL


A liturgia da Igreja, nestes dias de Páscoa, não se cansa de nos falar da ressurreição de Cristo. Toda a Palavra de Deus na missa e na Liturgia das Horas está empenhada em celebrar esse mistério. A Igreja continua assim a missão dos apóstolos, dos quais ouvimos apenas que “com grande coragem [...] davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus” (primeira leitura).
Na homilia do domingo passado tentamos uma abordagem histórica do evento da ressurreição; hoje, gostaríamos de tentar uma abordagem espiritual e moral. Aproximar-nos do mistério da ressurreição com uma preocupação espiritual ou moral quer dizer atualizar sua significação para nós, tirar dele luz, não só para a fé, mas também para a ação concreta do nosso dia-a-dia. Há, de resto, uma continuidade vital entre as duas leituras: a história fundamenta a fé; e a fé, por sua vez, fundamenta a prática. Da fé na ressurreição nasce uma moral pascal.
Nossas considerações partem desta afirmação: Cristo ainda não ressurgiu inteiramente! O texto de São Paulo: “O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne” (Cl 1,24), exige ser completado com a outra face do mistério: completo na minha carne aquilo que falta à ressurreição de Cristo. Isso porque o Cristo integral (o Christus totus) é formado pela Cabeça juntamente com os membros, pela Cabeça mais o corpo que é a Igreja; mas, se a Cabeça ressurgiu e senta à direita do Pai, Seus pés encontram-se ainda no sepulcro (Seus pés são os membros ainda peregrinos na terra).
A ressurreição de Cristo continua, pois, na história enquanto aí existir um membro do Seu corpo que deva repetir em si aquilo que falta para que a Sua ressurreição seja completa e definitiva. Jesus inaugurou o “estado de ressurreição”; Ele é as primícias daqueles que se levantam do sono (cf. I Cor 15,20); mas as primícias tais não são senão porque anunciam o resto da colheita; o “primogênito dentre os mortos” (Ap 1,5) não é tal senão porque supõe que outros O seguirão no ressuscitar de entre os mortos. Podemos dizer que Cristo espera ressuscitar em cada um de nós; em cada batizado encontra-se sepultada uma parcela de Cristo que espera a sua manhã de Páscoa para sair do sepulcro.
Isso explica a aparente incoerência do Novo Testamento, que por vezes fala da nossa ressurreição no passado (Ef 2,6: “Juntamente com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, com Cristo Jesus”; Cl 3,1: “Se, portanto, ressuscitastes com Cristo...”), outras vezes, ao invés, fala no futuro, como de um acontecimento que deve ainda realizar-se (cf. Rm 8,10s; II Tm 2,18). Não se trata de duas ressurreições diferentes – a da alma e a do corpo -, mas de uma mesma ressurreição – a espiritual – que é passada e futura simultaneamente, porque é contínua; começou no batismo e prossegue através de toda a vida, até que tenhamos chegado a formar (mas isso acontecerá somente após a morte) “um só espírito” (I Cor 6,17) com Cristo.
Há, em suma, uma “ressurreição do coração” (como a chama São Leão Magno), além da ressurreição do corpo; e, se a ressurreição do corpo é “no último dia” (Jo 6,40), a do coração é em cada dia. Ressuscitar deve ser, ou tornar-se, o movimento mais familiar do cristão.
Ressuscitar, mas como? Que significa ressuscitar? Para respondermos a essa pergunta devemos questionar-nos em que consistiu propriamente a ressurreição de Jesus. São João a define simplesmente como “passar deste mundo ao Pai” (13,1): passagem da vida deste mundo à vida do Pai. São Paulo não se afasta muito disso; concebe, de fato, a ressurreição como uma passagem da vida “segundo a carne” à vida “segundo o espírito”: “Jesus Cristo”, diz ele, “descendente de Davi quanto à carne, [...] segundo o Espírito de santidade, foi estabelecido Filho de Deus no poder por sua ressurreição dos  mortos” (Rm 1,3-4).
Ressuscitar não significou para Jesus aquilo que temos o hábito de imaginar, isto é, remover a lápide do túmulo e sair pairando no ar, ainda com um estandarte na mão, como em certos quadros de artistas. Não consistiu num movimento espacial e temporal. A explicação de tudo está no Espírito: o Espírito Santo entrou no corpo inanimado de Jesus, vivificou-O e O arrastou ao “Seu” mundo, que é o mundo de Deus. Não se pode dizer: “Jesus voltou à vida”, porque não se trata da mesma vida de antes; Ele começou isso sim, a viver uma vida nova, exatamente a vida “segundo o Espírito”, que é vida no poder de Deus, na Sua glória e na Sua liberdade.
Também para nós ressuscitar significa, então, passar de uma vida “segundo a carne” a uma vida “segundo o Espírito”, com a diferença fundamental de que, para nós, a carne não indica apenas a passibilidade, o sofrimento, a limitação, ou seja, as consequências do pecado, como no caso de Jesus, mas indica o pecado, verdadeira e propriamente.
Ressuscitar significa, segundo outra expressão de Paulo, viver uma nova vida (cf. Rm 6,4); abandonar o velho modo de viver (velho porque fruto de um longo hábito de pecado e porque conduz à morte) e viver de um modo novo, com a novidade criada pela Páscoa de Cristo. “Fazer a Páscoa” lê-se em um Padre da Igreja, “significa passar da velhice à infância; uma infância entenda-se, não de idade, mas de simplicidade” (São Máximo de Turim, Ser. [Sermões], 54, 1). Talvez o famoso “fazer-se como uma criancinha” do Evangelho não tenha outra explicação senão essa, e São Pedro captaram-a muito bem quando recomendava aos primeiros cristãos que fossem “como crianças recém-nascidas [que desejam] com ardor o leite espiritual” (I Pd 2,2). Tornar-se criança significa como o disse o próprio Jesus a Nicodemos, “nascer de novo” (Jo 3,3).
A passagem ou renovação de que falamos, tem um aspecto objetivo que poderemos chamar “a parte de Deus”; esta se realiza nos sacramentos: a mesma vida nova do ressuscitado vem a nós no batismo e na Eucaristia (cf. Rm 6,3ss). Dessa parte de Deus, absolutamente gratuita e anterior a qualquer esforço nosso, fazem parte também as três virtudes teologais – fé, esperança e caridade -, mediante as quais recebemos “as primícias do Espírito” (Rm 8,23) e começamos a viver como ressuscitados.
Deus faz sempre “a Sua parte”; Sua graça é indefectível. Mas não basta. É também necessária “a nossa parte”, o sim da nossa liberdade, e esse sim não é sincero e eficaz enquanto não for manifesto na cruz. Para fazer a nossa parte na salvação é necessário aceitar passar por uma morte: “Se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo Espírito mortificardes as obras da carne, vivereis” (Rm 8,13). Há, pois uma vida (a vida “segundo a carne”) que, na realidade, é morte; e há uma morte, ou uma mortificação, que, na realidade, é vida. Ressuscitar significa passar por essa mortificação. Consiste em dizer não às exigências insaciáveis do nosso “eu” velho, sedento de gozo e de satisfações que tem a levar-nos para longe da vontade de Deus. Consiste, poderíamos dizer, na obediência; Cristo na verdade chegou à Sua liberdade de ressuscitado tornando-se obediente até a morte (cf. Fl 2,7ss).
A moral pascal que brota da ressurreição de Cristo consiste, então, essencialmente nestes tópicos: caminhar segundo o Espírito, caminhar em novidade de vida, caminhar na obediência a Deus. Não se trata de uma moral abstrata ou individualista. Ao contrário! O próprio apóstolo Paulo no-lo demonstra. Na mesma Epístola aos romanos, na qual traçaram esses grandes princípios mostram também quais consequências práticas têm eles na vida cotidiana do batizado (cf. 12-14). Aqueles que aspiram serem homens espirituais e homens novos, diz ele: “Que vossa caridade não seja fingida. [...] Amai-vos mutuamente com afeição terna e fraternal. [...] Sede fervorosos de Espírito. Servir ao Senhor. Sede alegre na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração. Socorrei às necessidades dos fiéis. Esmerai-vos na prática da hospitalidade” (12, 9.10.11-13); devem alegrar-se com quem se alegra e chorar com os que choram; acolher quem é fraco na fé sem discutir suas dúvidas e sem julgá-lo; não devem ser orgulhosos, nem fazer justiça própria, antes deve submeter-se às autoridades constituídas e, acima de tudo, amar, porque o amor “é o pleno cumprimento da lei” (13,10). Cada uma dessas frases está à altura de iluminar e reformar nossa vida cristã, se tomada a sério, como programa no início de um novo dia ou de uma nova semana. Não se trata, então, de coisas abstratas.
Mas não se trata também, dizia eu, de uma moral individualista. Ao contrário, aqui se desce até a raiz da comunidade, ao ponto onde ele nasce. A comunidade nasce destas coisas: do amar-se recíprocamente, do acolher-se, do estimar-se, do compartilhar os próprios bens e do colocar os próprios dons a serviço de todos. O edifício de pedras vivas que é a Igreja (cf. I Pd 2,5) não se forma se antes não existem essas pedras vivas que devem formá-lo; a saúde do corpo inteiro resulta da saúde de cada um dos membros. É o conjunto dos diversos carismas que faz a comunidade; é a santidade dos membros um a um que exprime e manifesta a Igreja Una e Santa. A comunidade cristã não é uma entidade abstrata, caída do céu como um grande manto.
A força unificadora dessa moral pascal não se exaure nem se quer na formação da Igreja, mas alcança o cosmos inteiro. A libertação da criação está estreitamente relacionada com a libertação do cristão. Paulo trata das duas coisas, uma em seguida à outra (cf. Rm 8,5-18; 8,19-23). A criação aguarda ser libertada da servidão da corrupção para tomar parte na liberdade e na glória dos filhos de Deus. A espiritualização do homem remido por Cristo torna-se assim caminho para a espiritualização do mundo; a criação aguarda muitos São Franciscos, isto é, homens livres, novos, espirituais, que colham o seu tácito anseio de participar na glorificação de Deus e se façam cantores da sua esperança. Somente aquele que verdadeiramente ressuscitou com Cristo está â altura de fazer ressuscitar.
A moral pascal, que aqui tentamos esmiuçar, tem a sua nascente oculta, o seu princípio operador, no Espírito do Cristo ressuscitado. Na Eucaristia, que agora celebramos, acontece para nós como que uma nova efusão desse Espírito. Jesus se faz presente em meio à nossa assembleia como fez com os Onze reunidos no Cenáculo oito dias após Páscoa; vem “a portas fechadas”, porque não vem de fora, mas de dentro; a Sua presença nasce aqui entre nós, no sinal do pão e do vinho que se torna o Corpo e o Sangue do ressuscitado. Ele nos repete: “A paz esteja conosco! Recebei o Espírito Santo!”  


                                    Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       


 
Design by Free Wordpress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Templates