DOMINGO DA PÁSCOA – ANO B




“RESSUSCITOU VERDADEIRAMENTE”


                Os discípulos que na tarde da Páscoa voltaram de Emaús a Jerusalém para anunciar que haviam visto o Senhor, ao entrarem na sala onde estavam reunidos os outros discípulos, antes mesmo que abrissem a boca, foram acolhidos por um coro de vozes que gritavam: “O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão” (Lc 24,34). Todas as leituras do dia de hoje dizem que Cristo ressuscitou; mas só o texto de Lucas apresenta a mais o advérbio “verdadeiramente”. É uma pequena palavra (em grego, ontos), mas quão densa de significado! Quer dizer: na realidade (não é só um modo de dizer), segundo o ser (não apenas segundo o parecer).
                Dessa forma, a comunidade apostólica nos incute que, em se tratando da ressurreição, não basta uma fé qualquer, ainda que uma fé no seu sentido espiritual e simbólico, mas é necessária uma fé no fato da ressurreição, uma fé na sua verdade histórica. Aquele advérbio será, por isso, o eixo de nossa homilia pascal deste ano.
                Em que sentido se pode falar da ressurreição como de um evento histórico? Num sentido muito particular: ela se situa no limite da história, como a linha divisória entre o mar e a terra firme; está, ao mesmo tempo, dentro e fora. Com ela, a história se abre àquilo que está além da história: à escatologia; num certo sentido, é a ruptura da história e a sua superação, assim como a criação é o seu começo. Isso faz com que a ressurreição seja um acontecimento impossível de ser testemunhado e atingido pelas nossas categorias mentais, todas elas ligadas à experiência; ninguém presencia o instante em que Jesus ressuscita: ninguém pode alegar ter visto Cristo ressuscitar, mas apenas tê-LO visto ressuscitado. A ressurreição não se conhece senão a posteriori, a seguir. Exatamente como a encarnação: é a presença física do Verbo em Maria que demonstra o fato de que Ele se encarnou; assim também, é a presença espiritual de Cristo na comunidade, tornada visível pelas aparições, que demonstra que Ele ressuscitou verdadeiramente. Isso explica o fato desconcertante de que nenhum historiador profano faça alusão à ressurreição. Tácito, não obstante lembrar “a morte de certo Cristo ao tempo de Pôncio Pilatos” (Anais, 25), cala a respeito da ressurreição. Tal acontecimento não tinha relevância nem sentido, a não ser para quem experimentava suas consequências no seio da comunidade.
                Em que sentido falou, então, de uma abordagem histórica da ressurreição de Cristo? O que se oferece à consideração do historiador e lhe permite falar da ressurreição são dois fatos: a improvisa e inexplicável fé dos discípulos (uma fé tenaz, a ponto de resistir até à prova do martírio) e a explicação que nos deixaram eles dessa fé. Voltemos a percorrer seu testemunho, para ver até que ponto nos é dado, através dele, aproximarmo-nos do evento da ressurreição.
                Por volta do ano 56 d. C., o apóstolo Paulo escreve:
               
“Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado, e ressurgiu ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas, e em seguida aos Doze. Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior parte ainda vive (e alguns já são mortos); depois apareceu a Tiago, em seguida a todos os apóstolos. E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo” (I Cor 15,3-8).

                O núcleo central desse testemunho é um credo anterior a São Paulo, que ele mesmo – como diz explicitamente - recebeu dos outros e que nós podemos fazer remontar a mais ou menos 35 d. C., isto é, a cinco ou seis anos após a morte de Jesus. Testemunho, portanto, antiquíssimo.
                Mas, que é que atestam concretamente suas palavras? Dois fatos. Primeiro: “ressuscitou”, no sentido de “ergueu-se”, “ressurgiu”, ou, na voz passiva, “foi despertado, foi ressuscitado” – entende-se, por Deus. São palavras claramente inadequadas; Cristo, na verdade, não ressurge para o interior (como parece sugerir o prefixo re – que precede tais verbos); não retorna à vida de antes, como Lázaro, para depois morrer novamente; mas ressurge adiante, no novo mundo, na nova vida segundo o Espírito (cf. Rm 1,4). Trata-se de algo que não tem analogias na experiência humana e que, portanto, precisa ser expresso através de termos impróprios e figurado.
                Segundo: “aparecer”, no sentido de “mostrou-se”, “foi tornado visível” por Deus. Trata-se de uma experiência fortíssima e concretíssima, por força da qual “não podem deixar de falar” (citação livre de At 4,20). Quem a viveu tem certeza de ter encontrado pessoalmente a Ele, Jesus de Nazaré, não um fantasma dEle. Paulo diz que deles “a maior parte ainda vive”, encaminhando assim tacitamente a eles os leitores, para que se certifiquem. E a experiência vivida pelos outros é confirmada, a seguir, pela experiência própria: “Apareceu também a mim”. Quando alguém como São Paulo afirma com tanta simplicidade e segurança uma coisa dessas, poucas alternativas restam: ou de fato viu Cristo ressuscitado e vivo, ou é um mentiroso.
                As narrativas evangélicas espelham uma fase posterior do testemunho da Igreja. O núcleo central, porém, permanece inalterado: o Senhor ressuscitou e apareceu vivo! A isso se acrescenta um elemento novo: o sepulcro vazio. Dele tira João uma prova quase física da ressurreição de Jesus (cf. Jo 20,3ss). Mas também para os Evangelhos o fato decisivo continua a serem as aparições.
                Eis, então, em síntese, o que nos dizem as fontes. Depois da morte, Jesus se fez corporalmente visível a uma série de testemunhas, pelas quais se fez reconhecer como Aquele que vivia e agia entre eles antes da morte. Trata-se de uma experiência concreta, corporal: viram o Ressuscitado com os seus olhos, ouviram-NO com os seus ouvidos e, talvez, tocaram-NO (cf. Mt 28,9; Jo 20,27). Ao aparecer, Jesus deu a impressão de estar corporalmente presente no espaço e no tempo, de mover-se neste mundo. Foram encontros pessoais, cara a cara, como quando Ele estava vivo; isto é, as testemunhas tiveram certeza de que se tratava da mesma pessoa de antes. O Novo Testamento, a despeito de conhecer a experiência da visão, descreve as aparições do Ressuscitado como algo de completamente diferente.
                As aparições, todavia, testemunham também a nova dimensão do Ressuscitado, o Seu modo de ser “segundo o Espírito”, que é um modo novo e diferente, com relação ao modo de existir de antes, “segundo a carne”. Ele, por exemplo, pode ser reconhecido não por qualquer um que O veja, mas tão só por aquele a quem Ele mesmo se dá a conhecer. Sua corporal idade é diferente da de antes; está livre das leis físicas: entra e sai a portas fechadas; aparece e desaparece. Onde estava Jesus quando desaparecia e de onde reaparecia? É um mistério, como é um mistério o Seu comer após a ressurreição. Falta-nos toda e qualquer experiência do mundo futuro – o mundo de Deus no qual Ele entrou – para podermos falar dele. É como se alguém chegasse correndo sobre seus próprios pés até a beira-mar e então tivesse que se deter e contentar-se com lançar ao horizonte apenas o olhar, porque na água não vigoram as leis da física na forma como lhe permitiam caminhar em terra firma. No mundo da ressurreição entra-se somente com a fé.
                Todas as objeções contra o cristianismo se desmancham – já foi dito – contra a pedra revolvida do sepulcro de Cristo e são repelidas como as ondas pelo rochedo. É bem verdade, mas os crentes não podem eximir-se de encarar tais objeções e dar-lhes uma resposta, ainda que sabendo que suas respostas serão sempre estéreis, até que o próprio Ressuscitado venha a fazer-se luz na mente de quem escuta.
                E, acima de tudo, a respeito das aparições. Uma explicação que se repete com frequência é que se tenha tratado de visões psicogênicas, isto é, foram tão vividas as sensações de Cristo que os fizeram acreditar tê-LO visto de fato. Mas isso se fosse verdade, não seria menor milagre. Supõe, de fato, que diferentes pessoas, em locais e situações diversas, tenham todo tido a mesma “impressão” (ou alucinação).
                Os discípulos não podiam ter-se enganado: tratava-se de gente concreta, pescadores, nem um pouco dados a visões. De imediato descreem, e Jesus deve quase dobrar a resistência deles (Lc 24,25: “Como sois tardos de coração para crerdes”; Mc 16,14: “Censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração”). Não puderam sequer enganar os outros: todos os seus interesses se opunham a isso; teriam sido eles os primeiros a serem e a se sentirem  enganados por Jesus, se Ele não tivesse ressuscitado. Com que finalidade, então, enfrentar a perseguição e a morte por Ele? As visões ocorrem costumeiramente a quem espera por elas e as deseja intensamente, não a quem sequer pensa nelas; mas os apóstolos, após os fatos da sexta-feira de preparação da Páscoa, nada mais esperavam: antes, tinham dado por encerrado o caso de Jesus e pensavam em dirigir-se às suas aldeias e aos afazeres de antes.         Que é que veio a determinar neles a inesperada e radical mudança de estado de ânimo, através da qual creem, testemunham, fundam igrejas, a não serem as aparições de Jesus ressuscitado?
                Desde quando entrou em cena a ideia (introduzida por R. Bultmann) da desmistificação, é hábito dirigir-se esta objeção de fundo ao fato da ressurreição: tal fato reflete – diz-se – o modo de pensar e de representar o mundo próprio de uma época pré-científica, que concebia o universo como formado por planos sobrepostos (o de Deus, o do homem e o dos infernos), com a possibilidade de passar de um ao outro. Essa seria uma concepção mítica do mundo, que hoje não se pode mais aceitar. A isso se deve responder que a ideia da desmistificação não pode ser aplicada dessa forma ao fato da ressurreição de Cristo. A ressurreição da morte, de fato, contrastava com a de hoje, como demonstra o êxito do discurso de Paulo em Atenas (cf. At 17,32). Se, pois, os apóstolos a defenderam tão tenazmente não foram porque fosse ela conforme as representações do seu tempo, mas porque era conforme à verdade, isto é, àquilo que eles tinham visto, ouvido e tocado.
                Muitos dos que negam o caráter histórico da ressurreição, admitem, no entanto que Deus interveio diretamente no caso de Jesus de Nazaré, endossando a Sua causa aos olhos do mundo. Mas, se é assim, é claro que de algum modo Deus agiu miraculosamente em Jesus de Nazaré. E, se agiu miraculosamente, que diferença faz admitir que se tivesse tratado de verdadeira ressurreição e de verdadeiras aparições, de preferência a fatos interiores e puramente visuais? Há porventura algo que seja grande demais para Deus, ou por acaso Deus gosta de ilusionismo?
                Mas há mais. Negado o caráter histórico, de fato real, à ressurreição, o nascimento da Igreja e da fé se torna um mistério mais inexplicável ainda do que a própria ressurreição. “A ideia de que o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide posta em equilíbrio sobre um fato insignificante, é certamente menos crível do que a afirmação de que a ressurreição tenha realmente ocupado um lugar na história, comparável àquele que lhe atribui o Novo Testamento” (C. H. Dodd).
                Qual é, então, o ponto de chegada da pesquisa histórica, a propósito da ressurreição de Cristo? Podemos colhê-lo – como sugere Kierkegaard (cf. Diário, II, n. 2673) – nas palavras dos discípulos de Emaús: Alguns discípulos, na manhã de Páscoa, foram ao sepulcro de Jesus e constataram que as coisas eram como haviam contado as mulheres que lá tinham ido antes deles; mas não O viram (cf. Lc 24,22-24). Também a história se dirige ao sepulcro de Jesus e deve constatar se as coisas se deram conforme disseram as testemunhas. Mas a Ele, o Ressuscitado, ela não o vê. Não basta constatar historicamente, é preciso “ver” o Ressuscitado – e isso não o pode fazer a história, mas tão-somente a fé. De resto, aconteceu a mesma coisa com as testemunhas daquela ocasião: também para elas foi necessário um salto: das aparições e, talvez, do sepulcro vazio – que eram fatos históricos – chegaram à afirmação: “Deus o ressuscitou!”, que é uma afirmação de fé. Enquanto afirmação de fé, mais que uma conquista é ela um dom. E, de fato, no Evangelho, nem todos veem o Ressuscitado, mas só aqueles a quem Ele se dá a reconhecer. Os discípulos de Emaús tinham caminhado com Ele sem reconhecê-LO, até que, quando Ele quis, “se lhes abriram os olhos e o reconheceram” (Lc 24,31).
                Resta-nos rezar para que também os nossos olhos se abram nesta Páscoa para receber de um modo novo a luz da ressurreição, para reconhecer o Senhor no partir do pão e assim testemunharmos também nós aos irmãos que “o Senhor ressuscitou verdadeiramente”.
               
                                                    Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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