V DOMINGO DA QUARESMA – ANO B


UMA NOVA ALIANÇA - Jo 12,20,33

                O Evangelho deste domingo abre como que uma fresta na alma de Jesus e nos permite ver como viveu interiormente o aproximar-se da “Sua hora”. Estamos em Jerusalém, no dia imediato à entrada triunfal de Jesus; em Sua alma começou já a agonia do Getsêmani: “Presentemente”, diz, “a minha alma está perturbada”. Mas começou também o Seu Fiat; as palavras: “Pai, glorifica o teu nome!”, significam de fato: “Cumpra-se em Mim a Tua vontade; aceito a cruz, porque sei que ela será a suprema glorificação do Teu nome.” João nos propõe, em suma, nesta sua página, uma meditação sobre a morte-glorificação de Cristo. É uma prefiguração do mistério pascal, visto ainda como que colocado à frente, ainda por se realizar, e por isso de maneira mais dramática.
                Se o Evangelho nos parece um prelúdio à paixão, a primeira leitura nos convida a considerar o mais belo fruto dessa paixão: a nova aliança: “Dias hão de vir – oráculo do Senhor – em que firmarei nova aliança com as casas de Israel e de Judá.” Essa passagem de Jeremias é um dos textos proféticos mais elevados e vibrantes do Antigo Testamento; fazemos dele ocasião para uma meditação sobre o tema da aliança, sabendo estarmos assim dando um passo decisivo no caminho de aproximação da Páscoa.
                A ideia da aliança constitui uma espécie de nota contínua no diálogo entre Deus e o homem. Em torno dela e de suas renovações toma corpo a história sagrada, que se divide exatamente em duas partes: Antigo e Novo Testamento, ou seja, antiga e nova aliança.
                A aliança lança suas raízes na própria criação; na decisão: “Façamos o homem à nossa imagem” (Gn 1,26), está expresso o projeto de Deus de fazer do homem uma criatura inteligente e livre para que Lhe fosse um interlocutor e amigo. A primeira manifestação dessa liberdade, desgraçadamente, tomou a forma de um não a Deus; “E quando pela desobediência [o homem e a mulher] perderam a Vossa amizade, não os abandonastes ao poder da morte” (Oração eucarística IV).
                Para dar a entender ao homem o Seu projeto, Deus se serve de realidades humanas, como sinais. A aliança é um deles. Existia, ao tempo de Abraão, uma forma de solidariedade que, à falta de instituições políticas e civis mais evoluídas, representava o vínculo mais forte entre homens e povos: a instituição da aliança. Dela falam quer a Bíblia (cf. Gn 21,32; 26,28; I Rs 5), quer os documentos históricos dessa época. O que a aliança cria entre os contratantes se exprime com uma palavra: shalom, paz (cf. Gn 26,28ss), isto é, equidade e estabilidade de relações, harmonia entre direitos e necessidades das duas partes (cf. Gn 26,28ss). Nem sempre, porém, a aliança é bilateral; por vezes é a parte mais forte que oferece ou impõe a aliança ao mais fraco, e dita suas condições (G. von Rad).
                Assim é a aliança que Deus concede a Abraão: “Faço aliança contigo” (Gn 17,7). É um dom, mais que um pacto bilateral; na sua base não existe o medo ou a necessidade, mas a amizade.
                Essa primeira aliança foi um fato quase que pessoal com Abraão. Só com Moisés, na experiência do Sinai, vem ela a se estender a todo o povo. A ação de Deus começa a manifestar constâncias: a aliança com Ele supõe uma purificação e um desprendimento de situações anteriores, naturais ou de escravidão, supõe um pôr-se a caminho em direção à esperança: Abraão é chamado para fora de sua terra, e o povo, para fora do Egito. A aliança supõe o êxodo, porque o povo deve ser libertado de escravidões humanas a fim de estar livre para servir a Deus. O Decálogo (que nos foi relembrado pela liturgia há duas semanas) é exatamente a expressão desse serviço do homem e, por isso, da aliança (cf. Ex 20).
                Sob orientação dos profetas, Israel é conduzido a uma compreensão mais interior da aliança: os conteúdos jurídicos e rituais passam a um segundo plano, ante a revelação de uma aliança que é comunhão com Deus. Javé se apresenta ora como um pai que ama e guia o próprio filho, ora como uma mãe que não abandona o fruto do seu ventre, ora como um pastor que toma conta de suas ovelhas, ora como um esposo de amor forte e ciumento. Realiza-se entre Deus e o homem uma dependência mútua, um pertencer um ao outro9, como no amor humano entre noivos e esposos: “Sereis o meu povo, e eu, o vosso Deus” (Jr 30,22).
                O quadro do relacionamento com Deus parece ser todo luz. Mas não é bem assim: há um toque doloroso e dramático que na Bíblia acompanha todos os discursos sobre a aliança: a aliança está permanentemente em crise por causa da infidelidade de um dos contratantes; o povo não acerta o passo com Deus e caminha mancando, como diz o profeta Elias (cf. 1Rs 18,21); não para de retornar aos seus ídolos ou de buscar aliados humanos no Egito ou na Assíria.
                Nesse exato ponto situa-se o texto de Jeremias que lemos hoje: a aliança até agora conhecida não é o bastante; Deus está preparando outra, nova e diferente: “Será diferente da [aliança] que conclui com seus pais [...], aliança que violaram”. E a primeira novidade é esta: a aliança e a lei  não estarão mais escritas fora do homem, em tábuas de pedra, mas dentro do coração; cada um poderá reconhecer a Deus dentro de si; Ele se tornará o “seu” Deus, de um modo novo e insuspeitado. Deus dará aos homens um coração novo e um novo espírito, para que estejam à altura de observar a lei e a aliança (cf. também Ez 34,23ss; 36,25ss). O realizador dessa transformação será o Messias; sobre Ele, de fato, Deus colocará o Seu Espírito (cf. Is 42,1) e Ele se tornará “a aliança com os povos, a luz das nações” (v. 6).
                A profecia para por aqui. Sobre ela fecha-se o Antigo Testamento. Mas nós não nos podemos deter aqui, porque conhecemos a realidade. No ano 15 do império de Tibério César, às margens do Rio Jordão, isto é, num ponto preciso do tempo e do espaço, aquela profecia veio a se tornar realidade em Jesus de Nazaré, quando o Espírito pousou sobre Ele.
                Jesus não é como Moisés, que se limita a promulgar a aliança; Ele a realiza de modo perfeito na Sua Pessoa. N’Ele, Deus e homem não se falam mais a distância; os dois aliados são uma só e indivisa pessoa. Por isso, a aliança é não só nova como também eterna.
                Antes de morrer, Jesus institui um memorial dessa nova aliança, que é a Eucaristia: “Isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança, derramado por muitos homens em remissão dos pecados” (Mt 26,28). Não mais o sangue de um cordeiro ou de um bode (cf. Ex 24,8), mas o do Filho. É essa a glorificação do nome de Deus que ouvimos no trecho evangélico: sobre a crua, os pecados são remidos, o homem é reconciliado com o seu Criador, a soberania e a santidade de Deus são reconhecidas na obediência do Filho do homem; Cristo atrai a Si “todos os homens” (Evangelho de hoje) para entregá-los ao Pai. A ressurreição e o Pentecostes manifestam, por fim, abertamente, qual é o Espírito novo e a nova lei que Deus prometera pôr no coração do homem: o Espírito de Jesus Cristo ressuscitado.
                No princípio, com Abraão, a aliança é oferecida a um só homem e prometida a um povo; no Sinai e nos profetas ela é oferecida a um só povo e prometida a todas as nações; agora, com Cristo, a salvação é finalmente oferecida a toda a humanidade. Todos são chamados a entrar nessa aliança; não há excluídos; antes, os últimos podem tornar-se os primeiros (cf. Mt 19,30).
                No entanto, somente aqueles que de fato escutaram e acolheram o convite e foram batizados, formam atualmente o povo da aliança, povo sacerdotal e gente santa (cf. I Pd 2,9). Estamos falando – é claro – da Igreja, que é lugar e fruto da aliança. Nela os discípulos de Cristo vivem a maravilhosa experiência de serem “concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2,19). Todo domingo, reunida em torno à mesa da Palavra e do pão de Cristo, a comunidade volta a ouvir o mais íntimo da história de sua aliança com Deus, revive suas etapas e seus gestos fundamentais, até ao gesto supremo que agora nos preparamos para repetir com a consagração do cálice da nova e eterna aliança.

 
                                             Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       


               

 
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