DOMINGO DA PAIXÃO E DE RAMOS – ANO B




COMO LER A PAIXÃO


                A liturgia deste domingo tem seu ápice na leitura da narrativa da paixão do Senhor. Para muitíssimos cristãos (na prática, para todos aqueles que não participam dos rituais da Sexta-feira Santa), é  a única ocasião que tem para ouvir, no decurso de uma assembleia litúrgica, esta parte do Evangelho.
                Coisa, à primeira vista, estranha: a liturgia inseriu esta leitura no quadro do Domingo de Ramos, que se caracteriza por um clima de festa e de triunfo. Nossa celebração de hoje se abre com o “Hosana!” e culmina com o “Crucifica-o!” Mas isso não é um contrassenso: é, antes, o coração do mistério. O mistério que se quer proclamar é este: Jesus se entregou voluntariamente à Sua paixão; não foi esmagado por forças maiores que Ele (“Ninguém a tira [a vida] de mim, mas eu a dou de mim mesmo”: Jo 10,18); é Ele que, perscrutando a vontade do Pai, compreendeu que chegara a hora e a acolheu com obediência de Filho e com infinito amor pelos homens: “Sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, até o extremo os amou” (Jo 13,1).
                As narrativas da paixão situam-se na origem, não no fim do Evangelho. As biografias dos homens ilustres principiam com a narrativa do nascimento e se encerram com a da morte; a biografia de Jesus (se é que se pode falar de biografia) começou com a narrativa da morte e só mais tarde chegou à do nascimento. As narrativas da paixão foram as primeiras, de fato, a se formarem na tradição e a serem postas por escrito, tanto que os Evangelhos foram definidos como “narrativas da paixão precedidas de uma ampla introdução” (M. Kaeler). A concordância entre os quatro evangelistas é, nessas narrativas, muito maior do que no resto do Evangelho; quanto à trama essencial dos fatos, é, até mesmo, total. Todas as tentativas feitas, através dos séculos, pela crítica não crente, para arranhar sua credibilidade, fracassaram miseravelmente. Sua simplicidade nua, o tom narrativo isenta de polêmica, o papel insignificante que aí desempenham os próprios autores da narrativa, as próprias incoerências a que ninguém se deu o trabalho de expurgar: tudo concorre para dar a impressão de um testemunho objetivo e de primeira mão, frente ao quais as reconstruções críticas modernas acabam por mostrar-se sempre mais ou menos arbitrárias e tendenciosas.
                Quando a narrativa da paixão é lida com olhos de estudiosos e de historiadores, o problema fundamental é: quem foram os responsáveis pela morte de Jesus, os judeus ou os romanos? Jesus morreu por motivos religiosos (porque se proclamava o Messias) ou por motivos políticos (como agitador social e por rebeldia contra Roma)? Após a última Grande Guerra, a tragédia do povo judeu e a participação dos cristãos nas lutas de libertação fizeram com que esse problema voltasse à tona e apaixonasse, mais que quaisquer outros, os leitores do Evangelho. A pesquisa mais equilibrada respondeu já a esses quesitos: Jesus foi condenado pelos judeus e pelos romanos conjuntamente; na Sua morte deu-se uma estranha coincidência de motivos religiosos e de motivos políticos, ainda que a responsabilidade mais direta pareça, sem mais, recair – de acordo com a versão evangélica – sobre os chefes judeus da época (não, portanto, sobre o povo judeu de então e, menos ainda, sobre as gerações judias subsequentes!).
                Dito isso, damo-nos conta de que o problema não se encerrou, antes, no fundo, no fundo, sequer aflorou; resta explicar por qual motivo era necessário que o Filho do homem padecesse (cf. Lc 24,26). Por isso, o crente está em busca de outro responsável pela morte de Cristo; sente que há, por trás de suas costas, um acusador implacável, o qual, antes ainda que Jesus fosse preso, preparava já o cálice que Jesus havia de beber.
                A história da paixão apresenta estranhas inserções, que aparentemente rompem o fio da narrativa: a história da traição de Judas,  a da negação de Pedro, o lavar as mãos de Pilatos, Barrabás, os dois ladrões. Mas não são corpos estranhos; antes, reside aí a explicação de tudo. Essas histórias exprimem e simbolizam a única grande realidade que levou Jesus à cruz: “Carregou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro” (I Pd 2,24).
                Jesus levou nossos pecados à cruz, e nossos pecados levaram Jesus à cruz: “Ele foi [...] esmagado por nossas iniquidades” (Is 53,5; cf. I Pd 2,24). A Davi que, furioso, buscava o responsável pelo crime que Natã lhe contara, o profeta respondeu: “Tu és esse homem” (II Sm 12,7). O mesmo nos responde a Palavra de Deus a nós, que nos questionamos quem fez morrer a Jesus: “Tu és esse homem!” Judas que trai Pedro que renega Pilatos que lava as mãos, a população que se aquece junto ao fogo tagarelando disto e daquilo, os soldados que dividem avidamente entre si as vestes do condenado, os ladrões que mataram... não estão lá sozinhos: há multidões por detrás de cada um deles, e lá estamos também nós.
                Terminada a leitura da paixão, fechamos hoje o livro, mas agora já sabemos que a história não terminou: continua ainda, e ainda agora está em pleno andamento, “Os acusadores de outrora morreram”, escreveu um judeu como conclusão de um apaixonado livro sobre o processo de Jesus. “As testemunhas voltaram a suas casas. O juiz deixou o tribunal. Mas o processo de Jesus prossegue ainda” (P. Winter). Para ele – judeu – o processo de Jesus continua em aberto nos processos contra os judeus de todos os tempos. Também para nós, cristãos, o processo de Jesus e a Sua paixão continuam, mas com sentido bem diverso. Em dois sentidos: renova-se em cada discípulo (e em cada ser humano) que sofre e é perseguido como Jesus, por causa da justiça; e é renovado por todo aquele que, abandonando-se ao pecado, não faz senão prolongar o grito: “À morte com este [Jesus], e nos solta Barrabás! [...] Crucifica-o!” (Lc 23,18.21).
                Cabe a nós escolher com quais roupagens queremos entrar na história da paixão de Cristo: se sob as vestes do Cireneu que se põe ombro a ombro com Jesus para carregar com Ele o peso da cruz; se nas vestes das mulheres que choram do centurião que bate no peito, ou de Maria, em pé, silenciosa, junto à cruz; ou se nas vestes de Judas, de Pedro, de Pilatos e daqueles que olham de longe para ver como é que tudo vai acabar.
                A narrativa da paixão que ouvimos se encerra com a imagem da grande pedra rolada sobre a entrada do sepulcro (cf. Mc 15,46). Sabemos, porém, que aquela pedra não resistiu. Jesus ressuscitou e está sentado à direita do Pai. No entanto, enquanto perdura este mundo de dor e de pecado, Ele está ainda misteriosamente no túmulo; ainda não ressuscitou inteiramente. “Ele” escreve um autor do século II, “está nas prisões, está nos túmulos, está nos pelourinhos, está nos cárceres, está em meio a ofensas e debaixo de processo; porque com aqueles que sofrem, sofre Ele também” (Atos de João). A Semana Santa deve recordar-nos, sobretudo isto: “Destes três mistérios (a crucifixão, o sepultamento e a ressurreição), completamos nós na vida presente aquilo de que a cruz é símbolo, enquanto possuímos, pela fé e pela esperança, aquilo de que é símbolo a sepultura e a ressurreição de Cristo. E então se diz ao homem: ‘Toma a tua cruz e segue-me. ’” (Santo Agostinho, Ep. [Cartas], 55,24).
                Toda a nossa vida é, em certo sentido, uma Semana Santa, se a vivemos com coragem e com fé, à espera do “oitavo dia”, que é o grande domingo do descanso e da glória eterna.
                Nesta época, Jesus repete a nós o convite que dirigiu aos discípulos no horto das Oliveiras: “Ficai aqui e vigiai comigo” (Mt 26,38).
 
                                             Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       


 
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