Ele prega com autoridade- Depois de ter narrado o chamado dos primeiros discípulos, Marcos apresenta uma jornada do ministério de Jesus. A autoridade que ele demonstra no seu ensinamento e diante dos “espíritos imundos” causa curiosidade: “Quem é este para falar e agir dessa maneira?” O modo de contar do evangelista induz o leitor a fazer a mesma pergunta.
21Na cidade de Cafarnaum, num dia de sábado, Jesus entrou na sinagoga e começou a ensinar. 22Todos ficavam admirados com o seu ensinamento, pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei.23Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau. Ele gritou: 24“Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. 25Jesus o intimou: “Cala-te e sai dele!”26Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu.27E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: “O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!”
28E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia.
28E a fama de Jesus logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia.
Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!
São Procópio eremita, patrono da Boêmia[1], antiga região da República Tcheca, é retratado em pintura arando a terra, mas o arado, ao invés do cavalo ou do boi, é puxado pelo diabo. Alguém comentou dizendo que seria o precursor do doutor Fausto[2]. Existe uma semelhança? Talvez. Ambos se servem de um espírito maligno. Mas há também uma grande diferença entre servir ao mal e servir ao bem. Nas mãos da providência divina, também no final o mal deve servir ao bem. Todo cristão é chamado a mandar nos espíritos imundos.
Os espíritos querem compreender esta verdade à letra. Quantos existem! Publicaram uma estatística sobre as ciências espíritas da América Latina. Os números são impressionantes. Mas pior ainda é a lista das seitas satânicas na Europa. Existem aqueles que roubam na Igreja a Eucaristia para realizar perversos ritos satânicos. Não obstante isto, não é fácil falar aos homens de hoje sobre o influxo dos espíritos bons e dos maus sobre as pessoas. Alguns não querem crer no caráter espiritual da alma e ao mesmo tempo outros procuram contato com espíritos. Mas querem verdadeiramente ter poder sobre eles?
A dificuldade é também lingüística. A palavra “espírito” possui diversos significados na Bíblia como no uso comum. Num sentido genérico, significa o modo de pensar, a mentalidade. Quem possui o “espírito de Cristo” julga como ele, evita o “espírito do mundo” que julga os acontecimentos segundo os jornais e os discursos públicos. Quem possui o “espírito imundo” tem a imaginação poluída por imagens impuras. Consegue-se mandar neste espírito e expulsá-lo?
A linguagem da Bíblia e dos antigos semitas não é abstrata. Para estes povos, possuir o espírito bom ou maligno não é somente um modo de pensar. Normalmente o homem pensa como é. Os pensamentos brotam do coração. Se temos pensamentos santos, supomos que dentro de nós exista o Espírito Santo, o Espírito de Cristo. Orígenes ilustra isso desta maneira: vejo que acontece uma injustiça, quereria interferir. A justiça é Cristo, se trata assim da voz que me fala. Numa outra vez decido perdoar uma pessoa que me fez o mal. O amor é o Espírito Santo. Portanto foi ele que me inspirou e dá força de realizar a sua voz. Mas logo depois vem a idéia de me vingar, nasce em mim um pensamento mal. De onde ele provém? Os autores espirituais refletiram muito sobre este problema da proveniência das inspirações do mal. Certamente não podem ser sugeridos por Deus ou pelos anjos bons. Saem do coração? Também isto é problemático. O coração pode ser corrupto, pode ser um ninho de paixões. Mas foi criado assim? O interior do homem, criado por Deus, era um paraíso. Se há o mal, significa que ali penetrou a serpente, o espírito maligno que quer se apoderar do governo do nosso coração. Muitas vezes consegue. Nos casos extremos disso encontramos nos possessos. A Sagrada Escritura e a experiência dos santos conhecem tais casos. Certamente, precisamos ser prudentes e não apontar qualquer doença como possessão demoníaca, mas é um fato que tais casos existem. Como explicá-lo? É um fenômeno semelhante à hipnose. Alguém hipnotizado está sob o poder do hipnotizador a tal ponto de ser como um boneco nas suas mãos. Lhe impõe como movimentar-se, as palavras que deve dizer, até palavras que ele jamais diria, etc. Quando a hipnose termina, o hipnotizado geralmente não se lembra do que disse ou fez. Assim também acontece com os possessos que, libertos por intervenção da Igreja, não se recordam o que fizeram ou falaram, e assim não são nem mesmo responsáveis pelo passado.
A hipnose e a possessão, graças a Deus, são casos excepcionais na vida. Na vida normal conhecemos aquilo que se chama sugestão. A companhia de uma pessoa com quem vivemos numa estreita ligação exercita um influxo sobre nós, às vezes também de maneira misteriosa. Sabemos disso pela experiência. Na companhia de algumas pessoas nos sentimos tranqüilizados, enquanto com outros nos causam perturbação somente com a sua presença. Nos admiramos de quantas coisas nos vem à mente quando estamos com eles. Da mesma forma os autores espirituais explicam o influxo dos espíritos no homem.
Neste campo os eremitas tinham uma grande experiência e também aqueles que por algum tempo escolhiam viver na solidão. O primeiro a descrever bem tais experiências interiores foi Santo Antão, que foi para o deserto egípcio para encontrar a paz. Mas infelizmente não a encontrou. A sua biografia narra as tentações que sofreu por obra dos demônios. O homem moderno é cético e não crê facilmente nestas narrações, é verdade que nem mesmo as lê com atenção. Antão viu coisas estranhas no deserto: serpentes, leões que rugiam, monstros que apareciam e desapareciam de repente... nem precisa dizer que tremia de medo. Por muito tempo? Até o momento que compreendeu que tudo isto acontecia na sua imaginação: “Se estes leões fossem reais, pensou consigo, já a tempo não estaria entre os vivos”. Disto o eremita tirou esta conclusão: “Deverei talvez ter medo da minha imaginação e fugir diante das ilusões? Neste caso teria na verdade pouca coragem”. Assim Antão começou a rir quando estas imagens lhe apareciam e depois desapareciam. Mas refletiu seriamente sobre a proveniência de tais pensamentos.
Os psicólogos propõem as suas soluções: estas imagens são geradas pelos estímulos externos, daquilo que vimos e escutamos... Mas no deserto faltam estas ocasiões. A fantasia, portanto, busca imagem na memória. Hoje se busca explicar os pensamentos com os desejos escondidos no subconsciente. Todas estas explicações tem a sua razão, mas são parciais. Sobre nós influi também o ambiente em que vivemos, com as suas sugestões. No deserto tudo isto é reduzido ao mínimo. As Sagradas Escrituras falam da sugestão dos espíritos bons e dos espíritos malignos. Aqueles que conduzem seriamente a vida espiritual se convencem que não se trata somente de metáforas. Freqüentemente possuem pensamentos que não são nossos. No início ficamos apavorados! Como é possível podemos ter nos pensamentos algo assim? Estes estranhos pensamentos aparecem justamente nos momentos menos aptos, por exemplo durante a comunhão... Também Antão disso se admirava e temia este fato. E quando compreendeu que um tal pensamento não era seu, mas vinha do externo, tomou consciência de ter suficiente força para não identificar-se com eles e não aceitá-los como seu. Tinha, portanto, a fora de exorcizar o espírito imundo. A coisa era mais fácil do que ele esperava! Antão fez com uma certa alegria e ensinava também aos outros como fazê-lo. Por isto muitos vinham até ele.
Cada pessoa ama a tranqüilidade do coração, mas também faz cotidianamente a experiência de perdê-la. Existem aqueles que buscam ajuda nas sessões de psicanálise, outros buscam emoções fortes no álcool ou nas drogas, expulsando os demônios com Belzebul (cf. Mt 9,34). A libertação acontece somente no momento em que no rendemos conta que Jesus nos deu a força de resistir e exorcizar o mal que quer se apoderar do nosso coração. Então conquistamos a verdadeira paz.
Tomáš Špidlík
Oração
Senhor, nosso Deus afasta para longe de nós toda influencia do mal que nos impedem de sermos livres e de fazer-nos servidores do Reino, por meio de teu Filho Jesus Cristo. Amém!
[2] Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã de um pacto com o demônio, baseada no médico, mágico e alquimista alemão Dr. Johannes Georg Faust (1480-1540). O nome Fausto tem sido usado como base de diversos romances de ficção, o mais famoso deles do autor Goethe, produzido em duas partes, tendo sido escrito e reescrito ao longo de quase sessenta anos. A primeira parte - mais famosa - foi publicada em 1806 e a segunda, em 1832 - às vésperas da morte do autor. Considerado símbolo cultural da modernidade, Fausto é um poema de proporções épicas que relata a tragédia do Dr. Fausto, homem das ciências que, desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demônio Mefistófeles, que o enche com a energia satânica insufladora da paixão pela técnica e pelo progresso.