IV DOMINGO DA PÁSCOA – ANO B

                  

                

                                  “VOSSO POVO E OVELHAS DE VOSSO REBANHO”

               
                Nos três ciclos litúrgicos, o IV Domingo da Páscoa é um domingo dominado pela figura de Cristo bom pastor; é, simplesmente, o domingo do Bom Pastor.
                Um anúncio consolador vem ao nosso encontro na liturgia da Palavra: “O Senhor é nosso Pastor: de quem teremos medo?”.
                Para sabermos de quem Jesus quer se diferenciar, quando diz polemicamente: “Eu sou o bom pastor” (Jo 10,11) e: “Todos quantos vieram [antes de mim] foram ladrões e salteadores” (v. 8), é preciso iniciar com uma página do profeta Ezequiel sobre os pastores de Israel, à qual Jesus mesmo certamente se reportou. O mundo antigo era cheio de pastores: pastores reais que tornavam esse ofício tanto familiar quanto importante; pastores, também, eram chamados os chefes, os reis, os sacerdotes. O que, então, correspondia a esse título? É o que diz, precisamente, o profeta Ezequiel numa dura repreensão contra os chefes políticos e religiosos do povo eleito (os pastores de Israel):
               
“Ai dos pastores de Israel que só cuidam do seu próprio pasto. Não é seu rebanho que devem pastorear os pastores? Vós bebeis o leite, vesti-vos de lã, matam as reses mais gordas e sacrificais, tudo isso sem nutrir o rebanho. Vós não fortaleceis as ovelhas fracas; a doente não a trata; a ferida não a cura; a transviada, não a reconduzis; a perdida não a procura; a todas tratais com violência e dureza. Assim, por falta de pastor, dispersaram-se minhas ovelhas, e em sua dispersão foram expostas a tornarem-se presa de todas as feras. Minhas ovelhas vagueiam em toda a parte” (34,2-6).

Esse quadro nos coloca frente à figura eterna e universal do chefe entre os homens. Aquilo que acabamos de ouvir, em outras palavras, é o modo como os chefes, os dominadores e os poderosos conceberam sempre a sua relação com os homens, seus súditos. Uma relação de dominação e de exploração: sugar dos súditos tudo o que for possível, como se retira das pobres ovelhas o leite, a lã e a carne, deixando-as o mais possível “carneirinhos”, isto é, frágeis, doentes, feridas e, sobretudo, dispersas, divididas entre si, de modo a poder dominá-las facilmente “com violência e dureza”, como diz o profeta.
Jesus, à Sua época, constatava amargamente essa realidade atroz do domínio que se instala em qualquer poder humano. Dizia: “Os reis dos pagãos [isto é, os pastores] dominam como senhores, e os que exercem sobre eles autoridade chamam-se benfeitores” (Lc 22,25). Na longa fala sobre o bom pastor, Jesus trata com muita lucidez desses falsos pastores humanos: são mercenários; nada lhes importa, quanto às ovelhas; diante do perigo, fogem e deixam que as ovelhas sejam laceradas (cf. Jo 10,12). Não é o caso de pensar que Ele estivesse aludindo somente aos chefes zelotes que em Seu tempo açulavam o lobo – os romanos – para depois, à sua chegada, fugir e viver às escondidas, deixando o povo sofrer as consequências das duras repressões do dominador estrangeiro. O quadro é bem mais universal; é o quadro amargo do domínio do homem sobre o homem, da autoridade como escravização e exploração dos fracos. Ele se encontra radicado no egoísmo humano e por isso é eterno. Através dos séculos, assumiu por vezes um aspecto humano, revestiu-se talvez de filantropia, mas, se aprofundarmos um pouco, vemos que, com raríssimas exceções (houve até mesmos reis santos!), a situação não se alterou com relação ao tempo de Cristo. Há ainda regiões na terra em que a situação é pior do que nos tempos de Jesus, em que o homem domina sobre o homem “com violência e dureza”: a humanidade jamais esteve livre, e não o está tampouco hoje, dos tiranos.
Por que, então, se apropriou Jesus de uma imagem que se mostra tão comprometida na experiência humana? Por que se chama Bom Pastor e continua a nos chamar de Seu rebanho? Não teme, chamando-nos de Suas ovelhas, ferir nossa sensibilidade e ofender nossa dignidade de homens livres? A resposta é que, a despeito de todos os abusos humanos, Deus jamais renunciou ao Seu título de Pastor, como não renunciou ao título não menos comprometido de Rei. Falando através do profeta Ezequiel, depois da repreensão que acima ouvimos, acrescenta: “Vou tomar eu próprio o cuidado com minhas ovelhas, velarei sobre elas. Como o pastor se inquieta por causa de seu rebanho [...], assim me inquietarei por causa do meu; eu o reconduzirei de todos os lugares por onde tinha sido disperso [...]. Para pastoreá-las suscitarei um só pastor” (34,11-12.23).
Jesus, vindo ao mundo, apresentou-se como o Pastor prometido por Deus com todas as suas características. Ele conhece e ama as Suas ovelhas: chama-as pelo nome; para Ele, elas não são um número, mas pessoas amigas. Ele as apascenta, defende-as, dá-lhes – não tira – a vida; procura a perdida e a traz em festa de volta ao redil; reúne as dispersas. Em outras palavras, é um Pastor a serviço do rebanho, até ao dar por ele a vida: “O bom pastor expõe a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10,11). Ele é a antítese perfeita do chefe e do líder humano: “Não seja assim entre vós; mas [...] o que governa seja como o servo” (Lc 22,26). “Vós me chamais Mestre”, dizia, “e dizeis bem; no entanto Eu, Mestre, vos lavei os pés” (citação livre de Jo 13,13s). “O Filho do homem veio, não para ser servido, mas para servir” (Mt 20,28), isto é, não para ser apascentado, mas para apascentar. Por isso, a figura do Bom Pastor é completada, em João, pela do Cordeiro que dá a vida para tirar o pecado do mundo (cf. Jo 1,29). “O Cordeiro que está no meio do trono, será o seu pastor e os levará às fontes das águas vivas” (Ap 7,16). Que é que existe de mais distante do poder do que um cordeiro?
Aos cuidados de um pastor assim, ser ovelha não é humilhante, é salvação. Ele é o primeiro dos mártires da prepotência. Foi conduzido, também Ele, como cordeiro ao matadouro, mas com Seu martírio promoveu a subversão dos valores e criou uma possibilidade nova nas relações humanas. De então em diante, a verdadeira glória não mais estará no ser servido, e apascentado pelos súditos, mas no servir-lhes e nutri-los. Eis por que nós, cristãos, não teremos medo algum e nenhum complexo de nos sentirmos chamados e de aceitarmos ser “as ovelhas de Seu rebanho”.
O homem de hoje recusa desdenhosamente o papel de ovelha. Todavia, está completamente mergulhado nele; sem que nos apercebamos, deixamo-nos guiar servilmente por toda espécie de manipulação e de persuasão oculta. Outros criam modelos de bem estar e de comportamento, ideais e objetivos de progresso, e nós os seguimos; nós vamos atrás, com medo de perder o passo, aturdidos pelo alarido dos meios de comunicação; condicionados e dominados pela publicidade, comemos aquilo que nos dizem que comamos, e vestimos aquilo que nos ensinam os outros. Observem como se desenrola a vida das populações de uma grande cidade moderna: é a imagem triste de um rebanho que sai em bando, que se agita, que se pisoteia, em horas prefixadas, nos carros do transporte coletivo e nos metrôs, que se alimenta de coisas manipuladas por outros – sejam elas alimentos ou jornais -, e depois, ao fim da tarde, recolhe-se ao mesmo tempo ao redil, vazio de si e de liberdade: “Como ovelhinhas que saem do cercado... e o que faz a primeira,fazem-no as outras... simples e mansas, e o porquê, não o sabem” (Dante, Purg. III, 79ss).
Cristo nos propõe fazermos com Ele uma experiência de libertação. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (II Cor 3,17), aí emerge a pessoa com sua irrepetível riqueza e com o seu verdadeiro destino; emerge o filho de Deus “ainda oculto”, de que fala a segunda leitura da missa de hoje.
Por que há liberdade? Porque o Senhor, longe de mortificar nossa personalidade, ajuda-a a crescer, a formar-se; ele nos “personaliza” com o Seu conhecimento e com o Seu amor; faz nascer de nós a criatura nova, consciente e forte, aquela que o mundo não pode manipular porque não está mais sob suas garras: “Aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8,12); quem caminha na luz sabe distinguir as coisas, os valores; sabe distinguir entre sombras e realidade.
Esta meditação deve despertar em nós o sentido alegre de nossa pertença a Cristo bom pastor, a persuasão de sermos por Ele conhecidos e amados; mas deve despertar também o empenho de não O trairmos, para não recairmos sob outras pesadas vassalagens e escravidões. Jesus nos dá um sinal de identificação para vermos se somos ou não do Seu rebanho: “As minhas ovelhas escutam a Minha voz, Eu as conheço e elas Me seguem” (citação livre de Jo 10,3-4). Reconhecemos, nós a voz de Cristo, mesmo em meio aos mil e um chamados do mundo? Somos capazes de saltar ao som de Sua voz, mesmo no presente momento?
Aproximando-nos da Eucaristia, que é o real encontro com o Bom Pastor, humilde e confiantemente renovemos a Cristo a nossa adesão, com as palavras do salmo: “Nós somos (e queremos ser!) o Teu povo, Senhor, o rebanho das Tuas pastagens” (citação livre do Sl 78,13).

                                 
 Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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